A vinda tripla de Deus
Não somente no Novo Testamento cristão, mas também o Antigo Testamento
judeu está orientado para a vinda de Deus ao seu povo, sua humanidade e sua
terra. Se o povo se sente em terra estranha, abandonado por Deus e distante da
terra prometida, então grita por ele, como mostram bem as lamentações bíblicas: Levanta-te,
Senhor; levanta teu rosto e vem! (cf. Sl 4.6). Se o povo pressente a
vinda de Deus, então deve preparar o caminho: “Levantai-vos, ó portais
eternos, para que entre o Rei da Glória” (Sl 24.7). Experimenta-se a
presença plena do Deus vindouro e então esse povo canta e dança diante dele,
glorifica sua beleza.
Os dois Testamentos são testemunhas paralelas da esperança em Deus,
assim como Israel e a Igreja são testemunhas da esperança no mundo. Nós vivemos
no tempo do advento de Deus. A fé nos permite confiar em Deus e a esperança
torna nossos sentidos despertos e alertas para o vindouro. Ele veio na carne,
ele vem em Espírito e ele virá em glória.
Deus veio a nós em Jesus Cristo
A esperança cristã futura se fundamenta em uma lembrança histórica
segura. Esta é a presencialização do Cristo de Deus, que veio ao nosso mundo.
Ele faz de nossa vida a sua própria, transformando assim a terra num lugar de
esperança. Tal fato diferencia a esperança cristã de todos os outros sonhos e
temores futurísticos que ouvimos com frequência nos últimos dias.
Jesus Cristo se tornou extremamente próximo de mim quando procurei por
Deus e não encontrei qualquer resposta. Assim, eu vim a crer em Deus por meio
de Jesus Cristo. É por isso verdade quando digo: Sem Cristo, eu teria me
tornado ateu. Pois partindo das experiências da história humana ou da
contemplação da natureza, eu não teria a ideia que existe um Deus. Mais do que
isto, não teria nunca pensado e crido que este Deus é amor e quer o nosso bem.
Por causa de Cristo, comecei a crer em Deus. Dito de modo mais exato: Eu
comecei a crer no Deus de Jesus Cristo. Este Deus que Jesus chamava de modo tão
íntimo de Abba – Pai amado – e do qual anunciava aos pobres a chegada do reino.
Sempre que penso em Cristo, sinto a proximidade de Deus e da vastidão de seu
reino.
A primeira imagem pela qual fui achado por Cristo foi a imagem daquele
que desesperançado, prisioneiro e torturado na cruz dos romanos, gritava por
Deus. Eu me senti compreendido por ele como por um amigo que se torna partícipe
em nosso destino. Cristo seguiu o caminho do sofrimento e do abandono para
procurar pelas pessoas abandonadas e, assim, se tornar irmão delas. Isso me
tocou de modo pessoal: Deus abandonou seu Cristo para que Ele viesse ao meu
encontro no estado de abandono e me achasse. Descobri, assim, em seu destino,
algo que ainda não tinha trabalhado em meu próprio destino. Algo de sua
presença em minha própria vida.
Cristo socorre, Cristo salva. Ele não socorre, todavia, por meio de sua
supremacia, mas sim, por sua solidariedade conosco em nossa impotência. “Pelas
suas pisaduras, fomos sarados” é o que diz o profeta Isaías,
referindo-se ao servo sofredor de Deus, o qual deverá redimir o mundo (Is
53.5).
“Somente o Deus que sofre pode socorrer” escreveu Dietrich Bonhoeffer na
prisão. Deus socorre – primeiro e sempre – por meio de sua compaixão: “No
mais profundo abismo, lá estás também” (Sl 139.8).
Deus veio a nós em Espírito
A esperança cristã do futuro se fundamenta na contemplação de Cristo e
na experiência do Espírito vivificante. Nós não apenas relembramos a história
de Cristo e esperamos pelo futuro de Deus. Nós já experimentamos também hoje “os
poderes do mundo vindouro” (Hb 6.5). Essas são as “energias vitais” do
Espírito Santo.
Mas quem é o Espírito Santo? O Espírito Santo é o Espírito da vida que
vitaliza todas as coisas por ele tocadas. Ele é presença vital de Deus no
mundo. O dom da presença deste Espírito de Deus é o que de maior e mais maravilhoso
pode ser experimentado por todas as formas de vida, tanto em âmbito pessoal
quanto comunitário. No Espírito Santo, não está presente um tipo qualquer de
espírito entre tantos outros, mas Deus mesmo. O Deus vivo que é criador,
libertador e salvador.
Onde está o Espírito, ali está Deus de modo especialmente presente. Não
em uma forma de onipresença, mas na forma de automanifestação. E onde Deus se
manifesta, ali Ele partilha de si mesmo. As energias criativas de sua vida
eterna abundam e perpassam nossa vida mortal e a fazem, desde dentro,
plenamente viva. Onde quer que sintamos o Espírito de Deus, ali nós
experimentamos Deus. Como? Por meio de nossa vida vivida. Nós experimentamos a
vida curada e redimida, amada e amável. Não experimentamos a vida apenas como
uma nova espiritualidade do coração ou nova teologia da cabeça, mas com todos
os nossos sentidos, como uma nova vitalidade da vida. Nós sentimos e
degustamos, ouvimos, cheiramos e vemos nossa vida em Deus e Deus em nossa vida,
assim como é dito em 1 João 1.1-2:
O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com
os nosso próprios olhos, o que contemplamos, e as nossas mãos apalparam, com
respeito ao Verbo da vida (e a vida se manifestou, e nós a temos visto, e dela
damos testemunho, e vo-la anunciamos, a vida eterna...).
Existem muitos nomes para este Espírito da vida porque existem variadas
experiências de vida. Para mim, são os mais lindos os nomes de consolador e
fonte de vida.
Na comunhão com Cristo, experimentamos as forças vitais do Espírito
divino. Quem se tornou triste e sem participação em nada na vida, quem não
sente mais em si qualquer vitalidade, deve se votar para o Cristo e
experimentará a nova vitalidade do Espírito de Deus. A meu ver, esta constitui
a nova sensualidade (referente aos sentidos) da vida e o vasto âmbito vital de
Deus.
Assim como na experiência de uma grande tristeza nossos sentidos se
apagam e não podemos mais ver qualquer cor, ouvir nenhum tom e perceber o
paladar, parecendo mortos-vivos, assim também se abrem os nossos sentidos
novamente quando respiramos o amor de Deus. Nós vemos de novo este mundo
multicolorido, nós ouvimos novamente melodias, recuperamos nosso paladar e
todos os sentimentos. Somos tomados por uma grande aceitação da vida, aceitação
do Espírito vital divino.
Para o desenvolvimento desta nova vida, precisamos de um lugar espaçoso. ”Tu
me pões num lugar espaçoso”. Este lugar espaçoso é o presente do Deus
infinito, o qual cerca a nossa vida finita (Sl 139.5). A presença divina nos
cerca por todos os lados. Isso nos permite desenvolver nossa vida finita para
todos os lados. Nós podemos nos movimentar em Deus e Deus morar em nós. Deus
não é somente uma pessoa com a qual podemos falar, mas também o espaço no qual
podemos desenvolver nossas vidas. Segundo a tradição judaica, um dos nomes de
Deus é Makom (espaço). Nós, seres humanos, damo-nos espaço
mutuamente sempre que nos abrimos em amor e amizade mútuos e permitimos que os
outros seres humanos tomem parte em nossa vida. Sem tal espaço livre na vida
comunitária, não existe qualquer liberdade pessoal. O amor dá espaço e tempo
para a liberdade. Onde quer que nós experimentemos este espaço livre, ai nós
experimentamos a presença de Deus em nós.
Deus veio a nós em Glória
O Deus que nos foi mostrado por Cristo
é o “Deus da Esperança”, como Paulo o chama em Romanos 15.13. Deus não é o
eterno que está aqui, esteve aqui e aqui estará, mas o Deus que “vem” (Ap 1.4).
Ele vem ao nosso encontro desde o seu futuro. Por isso é que o abrangente
horizonte do futuro não é algo que se acrescente ao Cristianismo, mas seu
elemento constitutivo. Crer significa viver na presença do Cristo ressuscitado
e se deixar orientar pelo seu reino vindouro “assim na terra como no céu”. Nós
vivemos na expectativa de sua vinda. Nós não aguardamos o seu “retorno”, mas
vivemos cada dia na luz de sua vinda. Sobre nós brilha a estrela da promessa. A
promessa de Deus é como a aurora que anuncia a chegada de um novo dia: o dia de
Deus. “Vai alta a noite, e vem chegando o dia”, assim descreve Paulo a sensação
cristã do tempo (Rm 13.12).
Que futuro pode preencher as promessas
de Deus, nossas esperanças e as expectativas da terra? Deus vem para morar na
terra com os seres humanos. A totalidade da criação se tornará, então, seu
templo. O apocalipse descreve isto por meio da imagem da “Jerusalém divina”, a
qual desce sobre a terra. Por conta dessa Schechinah de Deus,
tudo precisa ser recriado e preparado. Então serão enxugadas todas as lágrimas,
o sofrimento e pranto vão passar e a morte não existirá mais (Ap 21.5). Quando
o divino estiver em tudo o que é terreno e tudo o que é terreno estiver em todo
o divino, então a beleza divina fará todas as coisas resplandecerem. Esta é a
plenificação da esperança histórica da humanidade e a consumação da criação. Em
seguida, estará tudo criado como foi no princípio: a vida e a luz, as plantas e
os animais e também os seres humanos.
Segundo 2 Pedro 3.12, devemos esperar e
apressar o futuro de Deus. Isso soa contraditório, mas não o é. Vamos
traduzi-lo em nossa experiência e em nossa língua:
Aguardar: é não se conformar às condições de injustiça
e não reconhecer as forças daquilo que é factual, pois bem se sabe que alguma
coisa melhor pode acontecer e algo diferente está por vir. Aguardar significa
nunca se resignar, nem entregar-se a si mesmo. Poder aguardar – isto é uma arte
da esperança. Paciência é a virtude da esperança. Aguardar significa viver em
ansiosa atenção até a chegada da hora da consumação final. Poder aguardar é
também fidelidade ao futuro prometido. “Senhor, Deus nosso, outros senhores têm
tido domínio sobre nós; mas graças a ti somente é que louvamos o teu nome”,
assim disse o povo de Deus prisioneiro quando do cativeiro babilônico (Is
26.13). E ele sobreviveu. Não existe nenhuma teologia da libertação sem esta
teologia do cativeiro, como Rubem Alves notou bem.
Apressar: Aqui, o que se tem em mente é a superação da
realidade presente e a antecipação do futuro do novo mundo de Deus, a cada
passo e em cada ato nosso. Por meio de cada ato de justiça, preparamos o
caminho da nova terra, onde reina a justiça. Faz-se justiça a quem sofre
violência e brilha, então, o futuro de Deus em seu mundo. Engajamos-nos em
favor de “órfãos e viúvas” e surge, então, um pouco mais de verdade em nosso
mundo.
Conforme nós exploramos suas riquezas e
forças vitais, a Terra geme com a violência e a injustiça. Ela aguarda por seu
direito. Nós nos “apressamos” ao encontro do futuro de Deus quando antecipamos
aquela justiça por meio da qual a “nova terra” deve surgir.
Aguardar e apressar: isto significa resistir e antecipar. Com
isso, santificamos a vida e nos tornamos seres seguros do futuro de Deus.
Fonte: Vida, esperança e justiça de Jürgen Moltmann.
Editeo, 2008, pp. 12 - 17.