20.1.12

Coisas que ficam para trás


por Gladir Cabral

No saguão de embarque do aeroporto de Congonhas (SP) há uma caixa de acrílico, logo na entrada onde as bagagens de mão são vistoriadas por um aparelho de raio X. Nessa caixa estão contidos vários objetos que os passageiros não puderam levar para dentro do avião: tesouras de cabeleireiro, tesouras escolares, facas, canivetes suíços, réguas de metal e objetos cortantes de vários tamanhos. Muitos desses objetos são caros, outros são completamente banais, outros ainda parecem ser caseiros, gastos pelo uso, improvisados. Tem até um ursinho de pelúcia! Deve ter sido doloroso para aquela criança deixar para trás tal objeto de afeto e desejo.
 
Certos momentos de nossa vida exigem que tomemos difíceis decisões. Certas coisas que cultivamos, certos hábitos, certos valores, certos desejos que trazemos no bolso devem ser deixados para trás. Para continuar a viagem, é preciso abrir mão deles. Isso é sempre necessário, às vezes doloroso, nunca fácil. Por outro lado, só assim nossas mãos e corações podem ficam mais livres de apegos e interesses menores. Na verdade, nem podemos imaginar a liberdade que encontramos ao deixar essas coisas para trás – é o que diz o músico cristão contemporâneo Michael Card.
 
Em sua belíssima canção “Things we leave behind”, o poeta medita sobre o chamado de Pedro e Mateus. Pedro esta à beira-mar, ocupado em seu ofício, consertando suas redes, quem sabe fazendo planos para uma nova pescaria, quem sabe refletindo sobre os ensinamentos do fascinante profeta João Batista. O fato é que Jesus se aproxima dele e o desafia a um novo projeto de vida: “Ser pescador de gente”. Imediatamente, Pedro abandonou os barcos, as redes, os “camaradas”, um estilo de vida de mais de 15 ou 20 anos, e seguiu a Jesus.
 
Mateus estava na coletoria, envolvido em seus relatórios, estatísticas, índices, cotas a serem alcançadas, pessoas a serem “visitadas”, bens a serem confiscados. Ele era coletor de impostos. Sua vida consistia em ter ou não ter, ganhar mais, acumular, taxar e calcular juros. Mas ao conhecer Jesus, uma transformação muito profunda ocorre em seu coração. Ao ouvir o chamado, ele deixa para trás a coletoria, certamente uma difícil decisão em tempos em que emprego, estabilidade financeira e posses materiais eram tão valorizados.

Existe algo estranho no exercício da posse. Facilmente as coisas que possuímos podem ser tornar donas de nosso coração. Facilmente nos tornamos adoradores e zelosos servidores de seus interesses. Temos uma propriedade. Muito bem. Silenciosamente, ela vai reclamando nossa atenção: já pagou o IPTU? Já pagou o IPVA? Viu só quanto estou valendo? Preciso de umas reformas? Olha só como sou preciosa! Você não vai querer me ver caindo aos pedaços, vai? O que seria de você sem mim? Eu é que lhe dou importância! Você acha que os outros lhe dariam atenção se não fosse meu dono? Como é que você vai viver sem mim?

Mas Cristo quer nos libertar do poder encantatório das coisas materiais. Ele quer libertar nosso coração da necessidade de centrar a vida na posse de coisas. Seu desafio de segui-lo exige de nós o exercício, às vezes doloroso, mas certamente necessário e surpreendente, de abrir mão de ser dono, proprietário último do que temos. Isso não quer dizer que devamos ser mendigos e viver de favores, pelo menos não todos nós. Na verdade, o que Ele quer mostrar é que não precisamos dessas coisas para viver plenamente. Podemos até tê-las em nosso nome, mas não em nosso coração. Então veremos quanta liberdade encontramos ao abrir mão dessas posses.

Meditemos na letra da canção “Coisas que deixamos para trás” (Things We Leave Behind), de Michael Card:
 
Lá está Simão assentado, tão tolamente sábio,
Consertando com orgulho suas redes.
Mas Jesus o chama e os barcos partem,
E tudo o que tem ele esquece.
Porém mais do que as redes que ele abandonou naquele dia,
Ele descobriu que seu orgulho estava acabando.
É difícil imaginar a liberdade que alcançamos
Com as coisas que deixamos para trás.
 
Mateus era rigoroso ao cobrar impostos
E obrigar as pessoas a pagar.
Mas, ouvindo o chamado, ele respondeu em fé
E seguiu a Luz e o Caminho.
E deixou o povo perplexo ao descobrir
Que a cobiça não estava mais lá.
É difícil imaginar a liberdade que alcançamos
Com as coisas que deixamos para trás.
 
Todo coração precisa se libertar
De posses que os prendem tão fortemente,
Pois a liberdade não está nas coisas que possuímos
Mas é o poder de fazer o que é certo.
Com Cristo, nossa única posse,
E dar se torna nosso prazer,
É difícil imaginar a liberdade que alcançamos
Com as coisas que deixamos para trás.
 
Nós mostramos em nossas vidas o amor pelo mundo
Quando adoramos as coisas que possuímos.
Jesus disse: “Deixa de lado os teus tesouros
E ama a Deus acima de todas as coisas!”.
Porque quando dizemos não às coisas do mundo,
Abrimos nosso coração para o amor do Senhor
E é difícil imaginar a liberdade que conseguimos
Com as coisas que deixamos para trás.

8.1.12

Percepções de si mesmo

por Taís Machado


Necessitamos ser amados. O orgulho é uma espécie de disfunção na capacidade de perceber-se amado. Portanto, o orgulho pode ser o estado de uma alma insegura, a manifestação de uma carência que desconfia jamais ser suprida.
 
Vive-se como se a vida fosse um concurso. Só que o orgulhoso procura, além disso, não apenas ser classificado, mas ser o primeiro. Afinal, ele não pode viver sem provar a si mesmo e exibir aos outros que ele é o melhor.
 
Geralmente o orgulhoso não tem consciência de que é assim. Entende-se apenas como esforçado, bastante dedicado, que se interessa inteiramente pelas coisas, que não desiste -- enfim, um brasileiro superior. A razão pode ser um forte apoio para justificar-se e defender-se inconscientemente.
 
O que predomina naquele que é tomado pelo orgulho é a competição. E quem compete, necessariamente, precisa observar o outro. Vive prestando atenção no desempenho do próximo a fim de superá-lo. Ou seja, a comparação é como o ar que ele respira. Não consegue viver sem isso, está o tempo todo vendo e julgando.
 
O orgulhoso é compelido a insinuar seus feitos todo o tempo. Ofende-se se não é mencionado. Considera-se facilmente injustiçado e os demais, ingratos, quando se trata, na verdade, de dificuldades suas.
 
Dominado pelo orgulho, assume um jeito de viver em que a autossuficiência se revela, às vezes, discretamente, em outras ocasiões, explicitamente. Assim seus dias ficam mais cansativos, pois vivem acorrentados ao peso de não poder pedir ajuda. Sentem como se isso fosse uma vergonha mortal.
 
Tudo isso compromete sua capacidade de gratidão e contentamento. O orgulhoso vive inconformado com a falta de reconhecimento dos que o cercam quanto a tudo que já fez. Chega a julgar o próprio Deus e vê-se no direito de explicar por que percebe que de certa forma Deus está em dívida com ele. Em última análise, pode concluir que Deus não é de fato confiável, pois não é justo. Sendo assim, vive uma solidão cruel, que se esmera por disfarçar.
 
A alma adoecida pelo orgulho acaba por viver seus dias miseravelmente. Vê inimigos o tempo todo, sente uma perseguição implacável em seu cotidiano. Portanto, envelhece com raízes de amargura, com dureza ímpar, com sofrimentos desnecessários. A distorção na maneira de olhar e interpretar a si mesmo, os outros e o seu contexto enruga a alma de tal maneira que poucos vestígios sobram da imagem de Deus, o Criador.
 
Tais Machado, paulistana, é psicóloga clínica e professora em seminários teológicos. É secretária nacional de capacitação da Aliança Bíblica Universitária do Brasil.