18.3.12

O indivíduo, a família e o evangelho


por Valdir Steuernagel



Muitos de nós crescemos com a percepção de que o evangelho é fácil e bonito. Escolhemos uma igreja e nela levamos nossas crianças, alimentamos rituais de passagem e fazemos celebrações familiares, envoltos em um “belo cenário”. O evangelho se torna um adendo, um cosmético para o nosso bem-estar. Porém, ele é algo bem diferente disto. Aliás, na edição anterior afirmamos que “é fácil, olhando para os Evangelhos, ver como Jesus é um causador de confusão”. Vimos a tensão vivida pela sua própria família quando ele perguntou de forma um pouco prepotente: “Quem é a minha mãe, e quem são meus irmãos?” (Mc 3.33)

Quem nunca ficou chocado com o modo relativo como Jesus parece tratar os vínculos familiares? Confesso ter dificuldade de entender quando ele diz que os inimigos serão os da própria casa e, também, que por causa do evangelho se criará cizânia familiar (Mt 10. 34-36). Quando ele chama os discípulos a segui-lo, pede fidelidade absoluta e coloca em segundo plano a importância da família (Lc 14.26). Dizemos que a intenção dessa palavra de Jesus é testar nossas prioridades. Contudo, seria mesmo necessário relativizar tanto os vínculos familiares? Ou haveria algum outro sentido nessa declaração?

Vejo três movimentos que precisamos discernir e abraçar no que se refere a essas palavras de Jesus. O primeiro nos desafia a olhar para dentro de nós, a reconhecer quem somos e a nos confrontar com os processos destrutivos que fermentam em nosso interior e poluem tudo a nossa volta: “Mas as coisas que saem da boca vêm do coração; são essas que tornam o homem impuro. Pois do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos e as blasfêmias” (Mt 15.18-19). Ao seguirmos Jesus, reconhecemos quem somos e, na busca por uma nova significação da vida, passamos por um processo de “lavagem interior”.

Contudo, como não somos indivíduos isolados da nossa história e contexto, este não é um processo individual. Somos, em grande parte, nossa história e nosso contexto. Criamos e impomos costumes e tradições que fazem parte da teia social que promove e também aprisiona a vida. Algo que foi constituído para facilitar e sustentar pode ser usado para escravizar, entristecer e empobrecer. Isso pode ser visto tanto nos milenares grupos étnicos e tribais quanto nas associações e aglomerados urbanos modernos. Jesus detecta e denuncia esses mecanismos. Ao acusar alguns de seus interlocutores de usar a tradição para deixar pai e mãe desprotegidos (Mt 15.3-6), ele se vale da relação familiar para demonstrar como isso acontece. Ao seguirmos Jesus, aprendemos a relativizar, não apenas nossos vínculos de pertencimento, mas também nossos usos e costumes. Por outro lado, ao segui-lo, experimentamos o sentido de resgate de nós mesmos, dos nossos vínculos e da nossa própria cultura. Por meio desse resgate, vemos aflorar o sentido tanto da família como do mandato cultural, com o qual fomos agraciados por Deus desde a criação.

O segundo movimento aponta, assim, para o resgate do sentido e da importância da família. O mesmo Jesus que em dado momento relativiza sua própria família, ao falar das tradições humanas, afirma o mandamento que aponta para o cuidado com os pais. E na hora de sua morte preocupa-se com a mãe e a entrega aos cuidados do discípulo João (Jo 19.27).

O evangelho não nos tira a família. Antes, acrescenta a ela uma família maior, que é a família da fé. Em conversa com os discípulos, Jesus aponta para essa realidade e lhes diz que serão recompensados com “irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos” (Mc 10.28-30). Assim, o evangelho nos abraça com a formação de uma comunidade que se nega a desenvolver tradições e costumes que encolham a vida, explorem o outro e se transformem em estruturas discriminatórias. O evangelho afirma opções de vida em que o interior é renovado e as prioridades são revistas, a família tem seu lugar restaurado e uma nova comunidade, com vocação de inclusão e de serviço em amor, emerge.

O terceiro movimento abraça o excluído, o solitário e o abandonado e resgata a dignidade da vida de cada um deles, como Jesus sempre fez. Aliás, foi para isso que ele apontou quando reagiu aos seus irmãos e à sua mãe, quando pretendiam buscá-lo e aprisioná-lo dentro de uma estrutura que ele queria relativizar e expandir. É preciso enxergar além da própria estrutura familiar; caso contrário, esta se torna egocêntrica, cansativa e maçante. É preciso ver que há um mundo lá fora que nos enriquece e desafia. Por isso Jesus diz que quem faz a vontade de Deus passa a ser sua família (Mc 3.35). E diz isso tanto para seus irmãos e sua mãe quanto para os que estavam ao seu redor. O segredo é fazer a vontade de Deus, e esta inclui honrar pai e mãe, cuidar dos filhos com amor, construir famílias integradas e belas e viver uma vida de amor e serviço. A verdade e a realidade disto são medidas, principalmente, a partir da maneira como se integra e se abraça o pequeno e o excluído. E disso nunca podemos nos esquecer.



Valdir Steuernagel • é teólogo sênior da Visão Mundial Internacional. Pastor luterano, é um dos coordenadores da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e um dos diretores da Aliança Evangélica Mundial e do Movimento de Lausanne.

[1] Fonte: Revista Ultimato Março-Abril 2012.

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